A LITERATURA INFANTIL E AS NOVAS TECNOLOGIAS [1]
Sally Pina Carvalho[2]
“Quem não lê é cego. Só vê o que os olhos vêem.
Quem lê, ao contrário, tem muitos milhares de olhos:
todos os olhos daqueles que escreveram.”
Rubem Alves
Destacar o conceito de literatura infantil faz-se muito relevante na construção de um pensamento acerca da temática deste artigo. Alguns estudiosos da área defendem que a literatura é o objeto escolhido pelo próprio leitor, aquilo que o agrada e impulsiona o seu imaginário, outros acreditam que a literatura é o objeto de formação de um agente transformador da sociedade, através dos textos literários é possível instituir valores e padrões comportamentais exigidos pela sociedade.
A literatura infantil é um dos suportes básicos para o desenvolvimento do processo criativo, pois ela oferece ao leitor uma bagagem de conhecimentos e informações capaz de provocar uma ação criadora. No contato com histórias lidas ou ouvidas, a criança vai adquirindo novas experiências. Daí a importância de ler e contar histórias para crianças desde seus primeiros anos de vida, e estimular a leitura, para que além de ler e desfrutar do prazer de ler, elas adquiram os recursos importantes para o desenvolvimento de sua fantasia e criatividade. (COELHO, 1987.)
Para que se compreenda a relação existente entre a literatura infantil e as novas tecnologias, é importante que se trace um breve histórico destacando como ocorreu o surgimento desse gênero literário e porque as tecnologias associaram-se a ele.
Segundo Lajolo e Zilberman (1985), os primeiros livros infantis que apareceram no mercado foram escritos na primeira metade do século XVIII por pedagogos e professores com o objetivo de estabelecer padrões comportamentais exigidos pela sociedade burguesa. Antes disso, apenas durante o classicismo francês, no século XVII, houve a produção de histórias que foram consideradas como literatura destinada à infância. A produção de literatura infantil iniciou-se simultaneamente na França e na Inglaterra.
Os grandes acontecimentos de fundo econômico e social que ocorriam na Inglaterra como decorrência do processo de industrialização foram elementos marcantes na produção dessa forma literária para o público infantil, traçou os seus objetivos iniciais. Segundo Belarmino (S/D) a Revolução Industrial inicialmente organizou-se nos grandes sistemas industriais, produção e distribuição de bens materiais como automóveis, cosméticos e máquinas, mas aos poucos alcançou o domínio da produção cultural, organizando a produção e a circulação desses bens culturais, inclusive da literatura infantil, em escala comercial.
O avanço tecnológico, que foi marca essencial de período industrial, acelerou a produção da literatura e dos demais bens culturais. De acordo com Zilberman (1987), com a invenção da impressora nesse período, e a produção de papel em maior quantidade, houve uma mudança no processo de divulgação da literatura infantil, esta deixou de ser coletiva e oral e passou a ser silenciosa e individual, centrada no círculo familiar ou no espaço da escola.
Lajolo e Zilberman (1985) afirmam que a industrialização do século XVIII gerou grandes renovações nos diversos setores: social, econômico, político e ideológico. Neste momento surgiram novas tecnologias e invenções inovadoras. As fábricas instaladas nos centros urbanos incentivaram o êxodo rural das pessoas que buscavam melhores formas de sobrevivência, mas esse inchaço populacional gerou a marginalidade de muitas pessoas que não conseguiram empregos, elevando assim não só os índices de miséria, mas também criminalidade.
Toda essa marginalidade precisava ser controlada, não exatamente a bem dos excluídos, mas porque a burguesia necessitava de mão-de-obra qualificada para trabalhar em suas indústrias. A criança, que há pouco ainda não era compreendida como tal, tornou-se a possibilidade de futuros operários, e daí decorre o interesse da burguesia em educá-las e prepará-las para o mundo do trabalho.
Segundo Rosemberg (1989), por séculos a criança foi vista como um adulto em miniatura, participando do universo adulto e até mesmo de orgias sexuais. Não existia a diferenciação entre crianças e adultos, não havia sequer uma palavra para designar o que hoje chama-se de infância.
A literatura Infantil nasceu atrelada ao surgimento do conceito de infância e associada à Pedagogia, uma vez que os textos deste gênero eram elaborados para se converterem em instrumentos de propagação dos valores morais estabelecidos pela sociedade da época. De acordo com Grings (2005), a burguesia visando a sua manutenção no poder, passou a incentivar as instituições que poderiam auxiliar na construção de comportamentos sociais. As principais instituições são a família e a escola.
Segundo Lajolo e Zilberman (1985), a instituição familiar se consolidou a partir da interferência do Estado Absolutista, que visava o fim da estrutura feudal, estimulando um modo de vida mais doméstico. A maior beneficiária, dentro dessa estrutura familiar, era a criança, que devia ser protegida e educada. A valorização da infância gerou uma nova configuração familiar, e esta passou a estar responsável pelo controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação das suas emoções.
A literatura infantil foi um instrumento relevante na efetivação desta tarefa, uma vez que possuía um objetivo didático. Ainda hoje, esse gênero literário muitas vezes limita-se a fins pedagogizantes e perde a sua perspectiva artística, impedindo a formação de indivíduos criativos e emancipados.
Desde a sua origem, a literatura infantil é assombrada por uma intencionalidade que se modifica de acordo com a época e os valores da sociedade vigente. E, até hoje, são encontrados livros endereçados às crianças, que pretendem transmitir valores, dizendo-lhes o que é certo eu errado, são obras classificadas atualmente como pedagógicas. (COELHO, 1991.)
Esta relação pragmática entre literatura e educação sustenta-se até os dias atuais, e é responsável por muitos deslizes na formação dos indivíduos. Segundo Oliveira (2005), a autêntica literatura infantil não deve ser feita essencialmente com intenção pedagógica, didática ou para incentivar hábito de leitura. A produção desse tipo de texto pela própria criança deve ser uma forma de estímulo pelo gosto à leitura.
A segunda instituição que foi incentivada pela burguesia a fim de solidificar-se política e ideologicamente foi a escola. A escolarização passou a ser obrigatória para todas as classes sociais, e como afirmam Lajolo e Zilberman (1985), com a justificativa de que as crianças, sendo seres frágeis e ingênuos, precisavam com urgência ser preparadas para o enfrentamento do mundo e do mercado de trabalho. De fato, como já foi dito anteriormente, a intenção da classe dominante era preparar os “operários-mirins” que trabalhariam futuramente em suas industrias.
Além deste objetivo, a burguesia queria educar as crianças para que estas, uma vez alfabetizadas, pudessem consumir os livros de literatura infantil que estavam sendo lançados no mercado. Lajolo e Zilberman (1985) destacam que numa sociedade que crescia por meio da industrialização e se modernizava em decorrência dos novos recursos tecnológicos disponíveis, a literatura infantil assumiu, desde o começo, a condição de mercadoria. O aperfeiçoamento da tipografia e a expansão da produção de livros propiciou à literatura infantil esse caráter mercadológico.
Grings (2005) propõe que a produção literária para o público infantil deva propiciar a criação de livros que despertem a criticidade, a imaginação e a emancipação das crianças, ao invés de se preocupar apenas em transmitir conteúdos didáticos. O problema da falta de interesse das crianças pela leitura deve-se em parte à família, que não fornece o exemplo necessário para a criação do hábito da leitura, e em parte à escola, que utiliza-se de livros com a finalidade limitante de transmitir conhecimentos.
Se por um lado, a realidade demonstra um grave desinteresse das crianças pela leitura, por outro estas têm se demonstrado muito envolvidas pela informática e pelas novas tecnologias em geral. Grings (2005) destaca uma nova visão de literatura através do avanço tecnológico, propõe o uso de sites e recursos áudio-visuais que disponibilizem histórias infantis. A web, se bem utilizada, pode ser uma alternativa para despertar o interesse das crianças pela leitura.
Os inúmeros recursos e a possibilidade de interação entre a narrativa e o leitor, são formas de inovação na literatura infantil. Por outro lado, a pouca interatividade e a limitação dos leitores a meros receptores das histórias produzidas representam um grave problema para a literatura. Grings (2005) em análise a alguns sites de literatura infantil, constatou que a relação da literatura com o mundo digital não tem favorecido em nada a criação do hábito da leitura, uma vez que a maioria das narrativas disponibilizadas continuam tendo caráter pedagogizante e moralizante. Esta pesquisadora sugere que o site ideal de literatura infantil deve englobar interatividade e fantasia, e possibilitar ao usuário a participação na criação dessas histórias a partir das suas próprias vivências.
A criança está imersa num cenário de grande avanço tecnológico, onde tudo acontece em tempo real e é fortemente influenciada por este pensamento prático e veloz, visto que, muitas delas já nasceram com esses novos meios incorporados à sua vida cotidiana. Segundo Cunha (2000), para se discutir a produção da literatura infantil na contemporaneidade, e a sua utilização no processo de aprendizado da criança, é necessário considerar o modelo de desenvolvimento da sociedade atual, baseado no avanço das novas tecnologias de informação e de comunicação.
Os produtores de literatura infantil devem estar atentos para perceber qual deve ser a sua conduta frente a esse contexto em que a cultura está subordinada às leis do mercado, consumo e novas tecnologias. Cogita-se na sociedade contemporânea, que por causa da massificação da informática, ao longo dos anos os livros possam ser extintos. Segundo Cunha (2000), o computador e a internet não significarão a morte da leitura e da escrita, e nem dos livros, assim como a televisão e o rádio não o fizeram. Os meios de informação e comunicação não anulam ou inviabilizam um ao outro, antes se ampliam e complementam mutuamente.
O espaço de produção e divulgação da literatura infantil através das novas tecnologias deve ser significativo para a criança visando a construção de um indivíduo emancipado e criativo. A emoção e o prazer da descoberta devem sempre ser renovados a cada leitura e momento de produção literária. A tecnologia na produção literária para crianças requer um olhar mais abrangente, que envolva novas formas de ensinar e de aprender.
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[1] Artigo apresentado como requisito parcial para avaliação da disciplina Educação e Tecnologias Contemporâneas – EDC 278, sob coordenação da professora Maria Helena Bonilla.
[2] Estudante do 4º semestre do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Bahia.